Baú
A poesia foi quase tudo
em minha vida
e me basta para a eternidade.
Mas por precaução levarei
na inusitada viagem:
- a Antologia de Quintana
- teu sorriso inacabado
- meu baú de saudade.
Abrigo
Nossa mãe
fazia bolinhos de chuva
e não entendíamos
por que nessas ocasiões,
geralmente, o sol irradiava
festivo...
Nossa mãe fazia
curau
com o milho colhido na hora
nas plantações ao lado da casa
no pacato sítio.
Nossa mãe
cosia roupas
em sua máquina antiga
estrategicamente posicionada
próxima à janela
com vista para prováveis peraltices.
Nem sequer imaginávamos
que entre um afazer e outro
em nós procurava abrigo.
A embriaguez da rosa
O perfume
embriaga a rosa
que campeia atônita
pelos vales da poesia.
Lado a lado
a rosa com seu perfume
a poesia com seus desejos
imaturos
exalando enigmas.
A poesia completa a
rosa
ou a rosa desmistifica a
poesia?
Pétalas se entrelaçam
se entregam
mutuamente se abrigam.
O que embriaga a rosa
é o aroma da poesia.
O lado obscuro do poema
O lado obscuro da vida
não é a morte
- de todas as partidas
a mais importante,
tampouco a lua
a todos revela o seu encanto.
O lado obscuro do poema
é luz
que aos cegos empresta seu canto.
Das dores e medos
Das muitas dores que o mundo produz
incomparável, urde, a indesejada
mórbidos planos à margem da luz.
Vós suportais? Talvez... Velas içadas!
Dos medos muitos que o peito suporta
um se agiganta em noites destruídas
é chaga aberta vigiando a porta
do coração avesso às despedidas.
Podeis indagar ao vento insensato;
- de onde esse medo arrebentando trilho?
- que dor é essa, tamanho inexato?
Digo-vos: - a dor é perder um filho
medo é sobreviver para enfrentar
estéril vida, sem porto, só mar...
O relógio
O relógio já não acompanha
os meus movimentos
antecipa-se, veloz,
e posta-se à frente
dos meus calculados propósitos.
Se girasse os seus ponteiros
no sentido anti-horário
(dezenas de vezes, centenas, milhares...)
convidá-lo-ia para uma
caminhada matinal
pelo parque.
À tarde
faríamos a sesta
no avarandado do sítio
com vista para o fazer
nada.
Conversaríamos sobre:
- o amor estampado no acasalamento dos pássaros
em festa pelos pomares
- a chuva que, eventualmente, caindo lavasse as nossas almas
- o odor de terra molhada, a indelével esperança, a renovação do afago
- meu cão amigo que, certamente, vigiaria
nossos olhares
- música leve, paixões ardentes, entregas desmedidas
versos inacabados...
Tê-lo-ia ia como amigo
primeiro
mesmo ciente de que , ele,
em sua missão inadiável
jamais pararia
e, ao meu descuido,
todos aqueles bons momentos
seriam, certamente, tragados.
Gostaria
- de beijar todas as manhãs perdidas em lamentações
descabidas
- de escrever poesia com a sensibilidade de Drummond, a simplicidade de Coralina e a destreza de Cecília
- de atear fogo aos manuscritos que alojados na memória me perseguem com felicidades suicidas
- de reaver a pureza que, um dia, tudo fiz para perder
- de abraçar meu pai em vida e dizer-lhe do amor guardado e extravasado à despedida
- de acordar sorrindo como quem ouve a mesma piada
tantas vezes recontada, mas que o semblante alivia
- de reivindicar aos céus um pouco do azul e sair feliz
assoviando um blues com a naturalidade de quem tudo
conquista.
Vila Boa de Goiás
I
Quem toma pra si
as dores
que porventura são minhas:
- o rumor das ausências
que os telhados do tempo
visita?
Quem sobrevoa o cerrado
no estimulante voo guarida:
- o quero-quero solidário
que ao sinal de perigo avisa?
Quem resiste à aridez
no semblante do tépido dia:
- caviúnas e lobeiras
com seus braços retorcidos
simulando acrobacias?
Quem ilumina uma fatia
desse mundo submerso:
- a luz da poetisa
rompendo o prisma adverso?
Ah, Cora Coralina
como admitir tua partida
se em todos os recantos
do poema
te apresentas tão bela
quão viva?
II
As águas do Rio Vermelho
na antiga Vila Boa de Goiás
teus primeiros passos ainda vigiam
e as peregrinações em solo paulista
repletas estão
de poemas e simplicidade.
Tardiamente reconhecida
burlaste tempo e espaço
e, hoje, repousas tranqüila
na imortalidade.
Portos, olhares e ausências...
Acalento olhares
como o solitário porto
ávido por embarcações
à deriva.
Dissimulo cantigas
num parto natural
que seduz e dá à luz
inexplicável melodia.
E portuário calejado
habito todas as ausências
que insistem em preencher
chegadas e despedidas...